Mas não foi o próprio Lula, aliado do prefeito Eduardo Paes, que disse que o ladrão tinha direito de roubar para tomar uma cervejinha?
Os mercados populares e as feiras ao ar livre são, praticamente, um componente cultural do Brasil, estando presentes de norte a sul do país. De forma geral, esse tipo de local costuma ser uma verdadeira ode à informalidade. Por ali, se compra e se vende praticamente tudo - sem nota fiscal, sem garantia ao consumidor, tudo ao mais belo e perfeito arrepio da fiscalização da Receita Federal. Como libertário, posso dizer que esse é um mundo quase perfeito, sem dúvidas.
Os camelôs, por sua vez, conseguem ter uma característica ainda mais anárquica - agindo, não raras vezes, em total desacordo com a lei estatal. Por isso, eles são considerados os alvos preferidos da truculência do estado. Não são raros os casos em que policiais agridem vendedores ambulantes, ou em que fiscais da prefeitura confiscam suas mercadorias por um motivo aleatório qualquer. Essas imagens, que geralmente circulam pelas redes sociais, são revoltantes e revelam a face mais terrível do Estado - uma máquina que dá água e blusa de frio para bandido, mas que rouba a mercadoria de trabalhadores informais.
Nesse sentido, um caso recente se junta ao rol da perseguição estatal contra os ambulantes. Trata-se do aglomerado informal situado na Rua Uruguaiana, na cidade do Rio de Janeiro - onde se localiza o famoso Mercado Popular, uma massa com mais de 1500 camelódromos, que ocupa quatro quadras na região. Esse mercado em si é bastante regulamentado pela prefeitura municipal, não sendo o alvo em questão. Os perseguidos pelo prefeito Eduardo Paes, na verdade, são os camelôs que se espalham pela citada rua.
De acordo com uma publicação feita pelo prefeito carioca na rede social X, “nas próximas semanas não será mais permitida a instalação de qualquer barraca ou ponto de comércio no espaço público”. Ainda de acordo com Eduardo Paes, o secretário municipal de Ordem Pública, Brenno Carnevale, será o responsável por resolver essa situação, expulsando os camelôs da Rua Uruguaiana.
Mas, afinal de contas, qual é o motivo apresentado pelo prefeito carioca para uma medida tão drástica assim? De acordo com suas alegações oficiais, essa região concentra o comércio da maior parte dos celulares roubados na cidade. Portanto, retirar os ambulantes daquela localidade ajudaria a impedir o comércio de itens roubados, evitando que esse crime prolifere pelo Rio de Janeiro.
Chega a ser engraçado ver o Eduardo Paes, que vem sendo apoiado pelo Lula para a reeleição, reclamar de celulares roubados. Pois não é justamente isso que o Lula defende? É ali, na Rua Uruguaiana, que os celulares roubados por vítimas da sociedade para comprar cervejinha vão parar! Aliás, você quer saber quanto o roubo de celular aumentou em 2023, primeiro ano do governo 3.0 do Molusco? Pois se segure na cadeira: houve um aumento 15,7%! Então, qual é a solução apresentada pelo Eduardo Paes, para evitar essa situação? Combater os roubos? Não: é muito mais fácil punir todos os camelôs mesmo.
Agora, será que o prefeito carioca é capaz de distinguir quais ambulantes são revendedores de mercadorias roubadas e quais são apenas muambeiros? Essas duas situações são completamente diferentes - uma delas sequer é considerada crime, segundo a ética libertária e para todos que têm bom senso. Porém, Eduardo Paes não se importa com isso. Afinal de contas, é assim que o estado funciona: culpa-se o todo pela parte. Por sinal, uma medida semelhante já havia sido tomada por Paes em janeiro - nesse caso, trata-se do fechamento da também tradicional, embora altamente informal, Feira de Acari.
Em decorrência dessa situação, o Movimento Unido dos Camelôs apresentou uma nota de repúdio contra o prefeito. De acordo com a nota em questão: “É lamentável que a gestão municipal opte por estigmatizar todos os camelôs da região, sem distinção e numa promoção que visa marginalizar a categoria na totalidade”. O Movimento está certo: o que Eduardo Paes está fazendo é, justamente, lançar na clandestinidade toda uma categoria econômica.
Só que a prefeitura municipal apresentou ainda outra explicação para essa drástica medida. Segundo o que foi divulgado, os ambulantes da Rua Uruguaiana estariam sendo extorquidos. De acordo com apurações preliminares, um sujeito de apelido Marcola - que não é o do PCC - estaria cobrando R$ 100 por dia de cada ambulante ilegal, a título de liberação para o comércio. Tá, mas e daí? Isso é culpa dos camelôs?
Afinal de contas, espera-se que a prefeitura cuide desse tipo de problema - até porque, extorsão continua sendo crime, não é mesmo? Será que Eduardo Paes, em toda sua genialidade, também vai proibir a venda de gás, de internet e de TV a cabo nas favelas, por conta da extorsão praticada pelas milícias? Percebe-se, também nessa justificativa, que o governo municipal está indo pelo caminho mais fácil, sem tratar do problema original.
A verdade é que nenhum governo gosta de comerciantes informais. Os ambulantes não podem ser extorquidos por meio de impostos; no máximo, pode rolar uma extorsão na forma de 'arrego' pago para algum fiscal. Ambulante informal não tem alvará de funcionamento, CNPJ, não emite nota fiscal, nem registra funcionário pela CLT. Não obstante o fato de os clientes dos camelôs ficarem bastante satisfeitos com o serviço prestado, os agentes estatais gostam de alardear que esses empreendedores informais são um perigo para a sociedade. Bom, certamente, eles são sim um perigo - para o bolso dos políticos, é claro.
Ah, mas e os itens supostamente roubados e vendidos por esses camelôs? Isso não fere a ética libertária? Sim, sem dúvidas: quem rouba um celular comete um crime, e quem revende esse item roubado também. Na verdade, se o comprador sabe que o item vendido tem uma origem criminosa, ele também tem culpa, por se tornar cúmplice nessa história. Só que esse caso específico tem alguns pontos que não podem passar despercebidos.
Em primeiro lugar, precisamos frisar o fato de que a prefeitura quer resolver o problema da criminalidade combatendo o revendedor, e não o ladrão. Todos nós sabemos que, ao contrário, o maior problema está no indivíduo que aponta a arma para o cidadão pacífico e subtrai sua propriedade. Só que perseguir esse sujeito dá muito trabalho. É muito mais conveniente, para o estado, arrancar o joio e o trigo do mercado camelô.
Em segundo lugar, é fato também que, numa sociedade livre, ao contrário do que acontece hoje no Brasil, providências seriam tomadas, para que coisas do tipo não acontecessem. Vendedores ambulantes só seriam permitidos com autorização expressa do dono da rua - até porque, como bem sabemos, as ruas seriam privadas. Contudo, o que existe hoje, sob a máfia estatal, é uma espécie de limbo: as ruas são públicas, o que significa, em tese, que podem ser usadas por todos. Mas não é bem assim que a coisa funciona, na prática.
Veja, por exemplo, que a Secretaria de Ordem Pública informou que “juntamente às forças policiais, vai programar para as próximas semanas uma ação de ocupação da rua Uruguaiana para impedir a instalação de ambulantes irregulares e a ocupação ilegal de área pública”. Ou seja: só usa a rua pública, quem a prefeitura deixa. Também nesse caso, o livre mercado tem uma solução muito melhor que o band-aid estatal.
Em terceiro lugar, precisamos falar também de como os problemas apontados, a respeito da atuação do típico ambulante, não fazem sentido. Afirma-se que o camelô não dá garantia para seus clientes. A verdade, porém, é que a garantia só se torna necessária se ela for uma exigência do consumidor. Se o comprador não faz questão disso, então, que diferença isso faz?
Na ética libertária, coisas como réplicas de produtos famosos feitas com materiais inferiores, cópias de qualidade mais baixa e coisas do tipo seriam plenamente válidas - desde que isso não fosse feito de forma a enganar o consumidor. É importante lembrar que fraudes sempre são condenadas na ética libertária, pois isso é uma forma de propaganda enganosa que visa prejudicar financeiramente o comprador. Se no contrato de compra e venda - que pode ser informal, tácito - não há previsão de garantia, então o cliente aceitou essas condições. Até porque, precisamos convir: ninguém compra um Nike de 50 reais achando se tratar de um produto original.
Porém, ainda que voltemos a falar dos celulares roubados - que, volto a dizer, representa um crime real, do ponto de vista libertário, - temos que reforçar o ponto de que o maior problema está na origem dos itens roubados. Ou seja, o problema mesmo é o crime inicial. Se a prefeitura do Rio de Janeiro proibir a presença dos camelôs na Rua Uruguaiana, eles simplesmente vão se estabelecer em outra parte da cidade. Afinal de contas, enquanto houver uma abundante oferta de celulares roubados, esse comércio - com altas taxas de lucro - será incentivado. Quer culpar alguém por essa situação? Então, comece colocando a culpa no larápio de 9 dedos, que incentivou essa safadeza, para começo de conversa.
A cultura do camelô é endêmica no Rio de Janeiro, tal como em outras partes do Brasil; e tudo bem que a coisa seja assim - isso é algo, de certa forma, libertário. Infelizmente, a cultura do roubo de celular também já está enraizada não só nas cidades cariocas, mas em todo o Brasil - a impunidade e a bandidolatria estão por trás disso. Dizem por aí, inclusive, que o carioca carrega sempre 2 celulares: um para seu uso pessoal, e outro para ser roubado. Sem dúvidas, uma dessas culturas precisa acabar, mas a outra - o livre comércio - deve ser mantida. Agora, entre a cultura do empreendedor, e a cultura do bandido, qual você acha que Eduardo Paes e o Lula vão preferir combater?
https://pt.wikipedia.org/wiki/Mercado_popular_da_Uruguaiana
https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2023/12/15/homicidios-e-roubos-de-celular-aumentam-em-2023-segundo-isp.ghtml
https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2024/02/29/prefeitura-investiga-denuncia-de-cobranca-de-taxa-de-r-100-para-camelos-da-uruguaiana-ambulantes-estao-proibidos-na-rua.ghtml