A fronteira mais bizarra do mundo nos ajuda a entender o grande problema que as fronteiras estatais representam para os indivíduos.
Qualquer indivíduo que comece a se enveredar pelos caminhos do libertarianismo, em pouco tempo vai passar da fase “imposto é roubo”, para outros temas mais específicos e técnicos. Na medida em que a percepção de que o estado é um ente ilegítimo que usa de violência contra pessoas pacíficas vai se cristalizando, o neo-libertário começa a adentrar em temas mais abrangentes. Um desses, sem dúvidas, é a questão das fronteiras - que nada mais são do que linhas imaginárias rabiscadas sobre um mapa, e que determinam a soberania e a jurisdição das nações. Essas duas palavras indicam, basicamente, que determinado governo tem o poder de agir de forma violenta contra as pessoas que moram na área delimitada por essas linhas.
Como muito do que hoje existe e é aceito como normal por todos, as fronteiras surgiram de forma espontânea. Na maioria dos casos, elas delimitavam, de forma conjunta, a propriedade dos indivíduos e a área em que determinado sujeito era o soberano - por exemplo, as muralhas das cidades antigas. Com o tempo, na medida em que a população humana foi crescendo, fronteiras naturais passaram a ser estabelecidas: rios, montanhas, florestas e demais acidentes geográficos serviam para dizer onde começava e onde terminava uma nação. Durante esse período, grande parte das terras sequer foi reclamada: só havia fronteiras onde interesses divergentes se encontravam.
Porém, conforme os estados foram ficando mais “sofisticados” - por falta de um termo melhor, - as fronteiras começaram a representar menos a realidade, e mais os interesses do próprio estado. Na atualidade, qualquer pedaço de terra já está loteado entre os diversos países existentes. Algumas fronteiras são motivo de disputa - algo que, em muitos casos, leva a conflitos reais. Contudo, algumas dessas fronteiras conseguem, mais do que outras, demonstrar a bizarrice que é a ideia de linhas arbitrárias estatais artificiais, de maneira geral.
Pensemos, por exemplo, no caso do Afeganistão. Ao olharmos para o mapa do país castigado pelos talibãs, podemos perceber que, no extremo leste, se encontra um saliente - uma faixa de terra comprida, que parece muito estranha para ser uma fronteira natural. Trata-se do Corredor de Wakhan que, de fato, não é uma fronteira natural. Esse saliente (situação que por vezes também é referida por “cabo de frigideira”) foi estabelecido no fim do século 19, pelo Império Britânico, como forma de impedir que o Império Russo tivesse acesso direto à Índia. Na verdade, nessa época, o Afeganistão foi tratado como um estado tampão, entre o território russo e o britânico. O Corredor de Wakhan termina por formar uma estreita fronteira, de meros 76km, com a China.
Outro caso semelhante é o do Braço de Caprivi, na Namíbia. Esse país africano foi originalmente colonizado pelos alemães, que sentiram a necessidade de ter acesso ao Rio Zambeze - considerado bastante estratégico, naquela época, finais do século 19. Por conta dessa necessidade, o Império Alemão firmou um tratado com a Inglaterra, em 1890, que estabelecia essa estreita faixa de terra, de pouco mais de 30km de largura, ligando o território da Namíbia ao citado rio. Aliás, se você quiser saber um pouco mais sobre a história da colonização desse país africano, recomendamos nosso vídeo de título: “A ALEMANHA protagonizou o primeiro GENOCÍDIO do século 20” - link na descrição.
Ainda na África, podemos citar também o caso da República Democrática do Congo. No sentido oposto ao da Namíbia, o mapa desse país exibe um pequeno saliente, que liga seu território não ao centro do continente, mas sim ao Oceano Atlântico. Acontece que, quando as nações europeias fizeram a Partilha da África, em 1884, por ocasião da Conferência de Berlim, ficou determinado que o Congo se tornaria um protetorado particular do rei Leopoldo II da Bélgica. Esse saliente foi uma solução encontrada pelos conferencistas, para garantir ao infame rei um importante acesso ao mar.
Outro exemplo de fronteiras esquisitas e não-naturais são as linhas retas traçadas entre diferentes países - que são, mais do que qualquer outro caso, linhas arbitrárias traçadas sobre um mapa. Podemos ver esse tipo de fronteira, por exemplo, entre a Arábia Saudita e o Iraque e a Jordânia, ou entre o Egito e a Líbia e o Sudão. Ou ainda, naquele que talvez seja o caso mais conhecido, entre os Estados Unidos e o Canadá, cujas fronteiras são determinadas, em sua maior parte, por uma linha reta imaginária - o Paralelo 49 N.
Existem ainda os enclaves - territórios de um país, localizados inteiramente dentro do território de outro país; e exclaves - partes de um país que se encontram fora de seu território principal. Alguns casos são bastante famosos - como o de Campione d'Italia, uma comuna italiana dentro do território suíço; ou da província angolana de Cabinda, separada do restante do país pelo citado acesso ao mar pela República Democrática do Congo. Também temos Kaliningrado, um oblast russo separado do restante do território governado por Vladimir Putin por uns bons quilômetros.
E é justamente essa dinâmica de enclaves e exclaves que explica a mais bizarra de todas as fronteiras já concebidas pela mente dos estatistas. Trata-se do caso da pequena cidade de Baarle, com seus poucos 9 mil habitantes, e que pertence, em partes, aos Países Baixos e, em partes, à Bélgica. A maior parte desse núcleo urbano está indiscutivelmente sob controle holandês - formando a cidade chamada de Baarle-Nassau. O problema mesmo está relacionado ao pedaço belga dessa cidade - cidade conhecida como Baarle Hertog. Pedaço não: pedaços, muitos deles.
Apenas tente entender essa bagunça: existem nada menos que 22 enclaves belgas - ou seja, pedacinhos de terra que pertencem à jurisdição da Bélgica - dentro do território dos Países Baixos. Por outro lado, existem outros 8 enclaves holandeses dentro do território belga. E só pra deixar a coisa ainda mais confusa: desses 8 enclaves, 7 estão localizados dentro de algum enclave belga.
Vamos tentar desenhar a explicação dessas fronteiras, para deixar a coisa mais clara. Imagine o território holandês. Dentro dele, existem vários pedacinhos de terra belgas; e, dentro de alguns desses pedacinhos, existem pedaços ainda menores, que são territórios holandeses. Em poucos passos, um holandês típico sai de sua pátria, atravessa a Bélgica e está, de novo, nos Países Baixos. Você consegue imaginar a dor de cabeça que isso pode representar?
E, de fato, essa bizarra fronteira motiva - sem trocadilhos - toda sorte de bizarrices. Por toda a extensão de Baarle, podemos encontrar linhas no chão, determinando onde começam e onde terminam os dois países. Isso poderia não ser tão ruim assim, se as fronteiras não atravessassem casas e estabelecimentos - que, em alguns casos, também são divididos por linhas, cruzes e letras. Algumas residências têm duas numerações: uma belga, e uma holandesa. Algumas têm até mesmo duas campainhas! Não são raros os casos em que um indivíduo sai de seu quarto, na Bélgica, para entrar em sua cozinha holandesa.
A origem dessa confusão remonta aos tempos medievais - mais precisamente, ao ano de 1198, por conta dos interesses de Godofredo, senhor de Breda - que correspondia a parte da Baarle atual. Naquela época, o conde da Holanda reclamou para si a soberania sobre as terras de Breda. Godofredo, visando garantir suas posses, se aliou ao seu vizinho, o Duque de Brabante, tornando-se seu vassalo. O duque entregou a Godofredo alguns outros pedaços de terra, reivindicando para si outros lotes. A partir daí, a região de Breda ficou retalhada, sendo governada simultaneamente por dois senhores feudais.
As terras de Godofredo passariam, por sucessão, à casa de Nassau - que governaria, no futuro, os Países Baixos. Já as terras do duque - cujo termo na língua local é “hertog” - permaneceram com sua família por ainda muitos séculos. Em 1648, com o fim da guerra entre a Espanha e os secessionistas holandeses, foi estabelecida a Paz de Vestfália. Esse acordo dividiu o território dos Países Baixos em norte e sul - esta última parte formando, na atualidade, a Bélgica. Por sinal, o ponto de mais dificuldade no estabelecimento dessa fronteira foi, justamente, o ducado de Brabante, especialmente no território de Breda.
Saltando no tempo: em 1815, após as Guerras Napoleônicas, o Reino dos Países Baixos foi estabelecido, sob o comando da Casa Real de Nassau. Contudo, algumas províncias submetidas à Sua Majestade se rebelaram em 1830, formando, na sequência, a atual Bélgica. Dentre essas províncias, estava o território de Brabante. Só que, se você ainda não dormiu, você certamente se lembra que parte do território de Baarle pertencia ao duque, e parte à Casa de Nassau. Obviamente, a cidade ficou dividida. Os partidários dos revoltosos se uniram à Bélgica - formando Baarle-Hertog, - mas os lotes governados pela Casa de Nassau se mantiveram fiéis ao rei - formando Baarle-Nassau.
Em 1843, finalmente ambos os países celebraram um acordo, estabelecendo as fronteiras entre as nações. Acontece que, no caso de Baarle, o acordo não foi tão simples - justamente por conta de todo esse histórico. Por fim, foi estabelecida uma cláusula determinando que seria reconhecida a nacionalidade de cada lote de terra na cidade, conforme sua vinculação histórica ou ao Conde de Nassau, ou ao Duque de Brabante. Só que a coisa demoraria mais 150 anos para ser resolvida por completo: foi só apenas em 1995 que a cidade terminou de ser loteada entre os países. Agora, cidadãos belgas e holandeses precisam arcar com essa doideira. De qualquer forma, a cidade se tornou até ponto turístico por causa disso - o que acaba compensando um pouco os problemas.
Na verdade, a bizarrice desse caso não torna a fronteira entre Países Baixos e Bélgica a pior do mundo - é só a mais estranha mesmo. Contudo, problemas bastante relevantes podem ser observados em outras partes do globo - justamente por conta delas, as linhas imaginárias estabelecidas por políticos. Por toda parte, fronteiras são usadas como motivo para migrações forçadas, ou como justificativa para o uso da violência estatal. As fronteiras arbitrárias estabelecidas na Índia e nos Bálcãs, por exemplo, resultaram na morte de milhões de seres humanos. Tudo isso pelo desejo estatal de determinar, de forma cruel, onde começa e onde termina o direito de um político de mandar na vida das pessoas.
O pior problema das fronteiras estatais, contudo, é mais profundo: trata-se da relativização da propriedade privada, ou seja, subjugação da soberania dos direitos individuais pelo estado. As fronteiras naturais e éticas são aquelas estabelecidas pela propriedade de um indivíduo - muros, cercas, grades e, no limiar da autopropriedade, os limites do próprio corpo. Ao estabelecer fronteiras arbitrárias, contudo, o que o estado faz é afirmar que, dentro daquele espaço geográfico imaginário, a propriedade privada não existe, e a violência estatal é autorizada. Faça um teste por você mesmo, deixe de pagar os impostos sobre seu imóvel para você ver se o governo não vai te expulsar de sua própria casa - em última análise, portanto, o atual direito sobre propriedade não passa de uma concessão.
Por mais bizarras que essas linhas criadas pelos políticos possam ser, o maior de seus problemas não é geográfico. Ele é, antes de tudo, uma questão ética.
https://www.opovo.com.br/noticias/mundo/2020/08/23/conheca-a-cidade-em-que-a-fronteira-entre-dois-paises-divide-casas-e-lojas-ao-meio.html
https://pt.wikipedia.org/wiki/Corredor_de_Wakhan
https://pt.wikipedia.org/wiki/Faixa_de_Caprivi
https://www.quora.com/What-is-the-history-of-Baarle-Hertog-and-Baarle-Nassau
A ALEMANHA protagonizou o primeiro GENOCÍDIO do século XX:
https://www.youtube.com/watch?v=9MMoHG4pIzg