As novas IAs e o Studio Ghibli: a polêmica de um ponto de vista libertário!

Milhões de imagens no estilo Ghibli invadiram a internet. O debate sobre inteligência artificial, arte e apropriação estética explodiu — mas quase ninguém está contando a história completa, que iremos expor a vocês.

Nos últimos dias, uma onda de imagens geradas por inteligência artificial replicando o estilo visual do Studio Ghibli tomou as redes. A repercussão foi explosiva. Para muitos artistas e críticos, o fenômeno não foi apenas uma brincadeira estética, mas um alerta vermelho: mais uma demonstração da apropriação indevida de estilos artísticos, da precarização da mão de obra criativa e da invasão de ferramentas automatizadas num campo que, até então, dependia do gesto humano.
O argumento mais citado pelos críticos vem de uma fala de Hayao Miyazaki, feita em 2016 durante uma análise de um experimento de IA que simulava movimentos grotescos. A frase viralizou: "Sinto fortemente que isso é um insulto à própria vida." Para ele, os criadores daquele experimento não tinham noção do que significa dor, nem intenção artística verdadeira. O vídeo da entrevista foi resgatado e colocado como símbolo da resistência ao uso de IA na arte.
Uma matéria publicada por Ana Carolina Haddad no jornal Brasil de Fato, no dia 4 de abril de 2025, reforçou esse cenário de indignação. Ela relatou não apenas a reprodução massiva do estilo Ghibli por milhões de usuários da nova geração do ChatGPT, mas também a contradição de ver a estética do estúdio, marcada por valores pacifistas e antiautoritários, ser utilizada por instituições como a Casa Branca, as Forças Armadas de Israel e a Polícia Militar de São Paulo. A estética foi apropriada por ideologias completamente opostas às defendidas por Miyazaki.
Além disso, os impactos ambientais e trabalhistas são sempre abordados por aqueles que se opõe ao progresso das IAs no que diz respeito a geração de imagens, músicas, ou outras coisas tidas como "humanas". Esse é o pano de fundo para a nova onda de acusações contra as ferramentas automatizadas. E nesse contexto, surgiu também a narrativa de que o Studio Ghibli resistiu por décadas à tecnologia digital por amor à arte, por recusa filosófica à automação. É uma história bonita, mas não é nem um pouco verdadeira.
O Studio Ghibli não evitou a tecnologia por apego emocional. A decisão foi técnica. Quando o mercado passou a adotar softwares como Toon Boom, os animadores seniores do estúdio, que carregavam boa parte da produção nas costas, não podiam simplesmente parar tudo e aprender ferramentas novas. Cada vez que você muda o processo de produção para incluir uma nova ferramenta, a curva de aprendizagem é imensa, e estamos falando de animadores com décadas de experiência num processo manual. O cronograma dos filmes não permitia, e forçar essa transição colocaria em risco a consistência visual e a eficiência de entrega. Por isso, o estúdio esperou até que houvesse uma solução técnica compatível com seu fluxo de trabalho — e encontrou isso no Toonz, um software que foi adaptado especialmente para eles. Essa parceria originou o Toonz Ghibli Edition, que mais tarde se tornaria o OpenToonz, uma ferramenta poderosa, open source e disponível gratuitamente para qualquer artista. O Ghibli não romantizou a técnica, apenas entendeu que tecnologia precisa servir ao artista e não o contrário.
Essa história já desmonta parte do argumento emocional que circula nos debates sobre IA. Mas vamos mais fundo. Porque o verdadeiro ponto aqui não é o Ghibli, e sim a própria noção de arte, diretos autorais e propriedade intelectual, que costumam ser conceitos mal compreendidos, especialmente em um mundo que ainda vive sob o jugo da propriedade intelectual — essa aberração jurídica que distorce o que é criação, cultura e consumo.
Antes de mais nada, é fundamental entender a arte como o que ela é de fato: uma técnica, um domínio de linguagem e forma. Muita gente pode dizer que arte é expressão, arte é isso, é aquilo, mas o fato é que quando falamos de arte estamos falando de algo que é feito para que outras pessoas consumam. Pode ser uma ideia, um conceito, um sentimento, uma ideologia, a arte é a técnica que você desenvolve ou aprende para transmitir ao receptador a mensagem que você quer, seja por meio de imagens, de sons, de música ou dança, até mesmo teatro. A arte é intrinsecamente subjetiva e quando falamos que "arte é subjetiva", estamos dizendo que a expressão artística tem uma margem de interpretação, sim, mas isso não quer dizer que qualquer coisa seja arte. Uma imagem gerada por IA, por si só, não é arte no sentido técnico. É uma peça gráfica. O software não tem intenção, não tem contexto próprio, não tem visão de mundo, nem experiências que poderiam dar nuances para o material que um artista humano pode ter. O que ele produz são, na verdade, estatísticas que simulam a intencionalidade humana com base em dados. Ele simula, mas não cria.
Mas isso também não quer dizer que o resultado não possa gerar valor para alguém. E é aí que entra um ponto libertário essencial: por ser intrinsecamente feita para os outros, a criação artística também é um tipo de consumo. E o consumo é subjetivo. Um consumidor não precisa justificar por que gosta de algo. Se uma peça gráfica criada por IA agrada a ele mais do que uma feita por um artista humano, essa preferência deve ser respeitada, mesmo que o resultado "não seja arte" no sentido técnico. A praxeologia, ciência da ação humana segundo a Escola Austríaca de economia, parte desse princípio: as escolhas são individuais e têm valor dentro do contexto em que são feitas.
E falando em mercado, precisamos falar de propriedade intelectual. Ou melhor, da sua inexistência. A ideia de "propriedade" sobre algo intangível como um estilo artístico é uma ficção jurídica que só existe graças ao aparato coercitivo do Estado. No mundo real, ideias não podem ser escassas. Elas são, por definição, infinitamente replicáveis. Se você tem uma ideia e eu a copio, você ainda a possui. Ninguém foi roubado, pois nesse caso, eu apenas a repliquei sem causar danos a quem teve essa ideia primeiro.
É por isso que, mesmo sob a lógica do copyright vigente, estilos e traços não são protegidos por lei. Não existe "propriedade intelectual" sobre uma estética. Um artista pode se inspirar no traço de outro, pode estudar sua técnica, pode até a imitar. E isso não é novo. A cultura doujin no Japão, por exemplo, se baseia justamente na criação não-oficial a partir de obras conhecidas. Mangakás e ilustradores amadores constroem carreiras inteiras fazendo quadrinhos paralelos de Pokémon, Naruto, Super Sentai ou qualquer outra franquia, sem que isso seja visto como "roubo".
Aliás, muitos nomes grandes saíram desse circuito doujin. Toyotaro, que hoje desenha Dragon Ball Super, começou fazendo doujins de Dragon Ball Z. Christian Whitehead, criador da Retro Engine, também começou na cena independente. Ele reconstruiu as mecânicas clássicas do Sonic em uma nova engine que impressionou tanto que foi contratado pela própria SEGA para portar jogos antigos para sua tecnologia e, mais tarde, desenvolveu Sonic Mania. Outro exemplo é o da artista japonesa Shiori Teshirogi, que fazia doujins de Harry Potter e passou posteriormente a trabalhar com Cavaleiros do Zodíaco, sendo responsável por criar Cavaleiros do Zodiaco The Lost Canvas. Esses casos mostram que o livre trânsito de ideias e estilos, longe de destruir o mercado ou a "autenticidade", cria pontes, forma talentos e alimenta a cultura.
Enquanto isso, o que está acontecendo no mercado é ainda mais interessante. A explosão de peças visuais geradas por IA está criando uma nova escassez: a de artistas humanos. Quanto mais o mercado se enche de conteúdo automatizado, mais cresce o valor da arte feita por gente. Alfaiates e cuteleiros sobreviveram à industrialização porque sua produção tem um componente subjetivo, afetivo, expressivo. Um cuteleiro imprime sua história na lâmina. Um alfaiate entende o corpo que veste.
Pessoalmente, gosto de lembrar do meu avô quando penso nisso. Ele era representante comercial da Singer, a marca de máquinas de costura. Andava sempre de terno. No dia a dia, usava roupas feitas pela indústria têxtil, bem cortadas, práticas. Mas havia um terno especial. Um só. Não ficava em casa, ficava guardado no alfaiate que o produziu. Era usado apenas em ocasiões importantes. Quando ele precisava, ia até lá, experimentava, fazia ajustes. O alfaiate conhecia cada curva do corpo dele. A roupa era dele de verdade. Carregava uma história.
Esse terno nunca foi substituído. E esse tipo de relação com o feito à mão não vai sumir com IA nenhuma. Muito pelo contrário. O que vemos agora é o início de uma valorização ainda mais forte do que é autêntico, do que é feito com presença humana. Não por nostalgia, mas por escassez real.
No fim das contas, o que estamos vendo não é a morte da arte, mas o renascimento da autoria como marca de valor. As IAs vão continuar gerando imagens, e tudo bem, aumentando nossa produtividade cada vez mais. Mas os artistas precisam entender que não se compete com uma inteligência artificial; o seu diferencial é justamente a relação que você cria com seus clientes.

Por fim, vou deixar aqui registrado um manifesto que eu mesmo, autor deste artigo, escrevi:
Manifesto do Criador Livre: (por quem já entendeu que a arte não é propriedade)
Arte é consumo!
Mas antes de ser algo consumível, é expressão.
É sentimento em forma.
É urgência em voz, cor, gesto ou silêncio.
E por isso, não pode ser trancada num cofre.
Não pode ser engaiolada em registro pago.
Não pode ser monopolizada por quem tem mais advogados.
A Propriedade Intelectual não é um direito:
é um serviço vendido pelo Estado aos que podem pagar.
É um grilhão dourado, uma cerca invisível
que separa o criador do controle da própria criação.
Ela não protege o artista independente.
Protege a oligarquia criativa,
os estúdios, os conglomerados,
os detentores de capital e influência.
Enquanto vendem a promessa de "proteger sua arte",
eles garantem apenas que você não tenha acesso a ela
sem antes passar pelo caixa de um cartório.
E quando tentamos resistir,
nos chamam de ingênuos.
Mas a ingenuidade é deles,
que ainda acreditam que a arte vive num cartório.
Acreditamos na cultura livre.
Creative Commons, código aberto, remix, colaboração.
Ideias que se espalham como fogo em palha seca.
Nossa arte é semente, não patente.
É ponte, não muro.
É grito, não propriedade.
Mas que fique claro:
Liberdade não é gratuidade.
Arte, mesmo livre, não nasce do nada.
Requer tempo, estudo, dedicação, esforço emocional.
Para nós, arte é expressão, é paixão, é vocação.
Para o público, arte é consumo.
E se ela é valiosa para você — apoie quem a cria.
Compre, comissione, compartilhe, divulgue, vá aos shows, aos lançamentos, aos eventos.
Não por obrigação, seja ela legal ou moral.
Mas porque a arte que te toca merece ser sustentada.
Prestigie, incentive, apoie, celebre o artista que você admira.
Pois defender a extinção da propriedade intelectual
não é condenar artistas à fome.
Pelo contrário:
é romper um sistema que os explora,
e construir outro que os valorize de verdade.
Somos os criadores que recusam o trono,
que rasgam contratos e assinam com alma.
Nossa arte é livre — mas não é descartável.
É de todos — mas também é o que nos sustenta.

Referências:

https://www.brasildefato.com.br/2025/04/04/ias-nao-geram-arte-trend-de-ia-que-recria-estilo-ghibli-evidencia-apropriacao-de-obras-e-perda-de-espaco-para-artistas/
https://www.youtube.com/watch?v=ngZ0K3lWKRc