Trump quer implementar o Bitcoin "Made in America", mas essa ideia é tão aplicável quanto revogar a lei da gravidade.
Em uma publicação em sua rede social, Truth Social, o presidente eleito dos Estados Unidos Donald Trump fez uma promessa audaciosa: garantir que todo Bitcoin não minerado fosse "feito nos Estados Unidos". Esse compromisso, que foi feito após um encontro com mineradores de criptomoedas em Mar-a-Lago, caiu como uma tentativa de alinhar sua imagem com um setor em franca ascensão. Para o público comum, este anúncio soou como mais uma declaração imperialista, onde o republicano estaria expressando mais uma vez a sua vontade de subjugar a economia global aos seus interesses.
Trump prometeu cumprir uma longa lista de promessas de campanha, mas dentre todas elas, essa talvez seja a mais desafiadora de todas, mais audaciosa até que a sua intenção de anexar o Canadá aos EUA. Piadas à parte, o crescimento da mineração na África, Ásia e América Latina, aumento da competitividade e descentralização da rede parecem ter influenciado a fala do presidente eleito. Este é um comentário típico de Trump, polemista e polarizador, mas definitivamente fora da realidade no que tange a sua aplicação. Esse encontro em questão foi um marco importante na transformação de Trump, de cético em relação às criptomoedas para um dos maiores aliados da indústria.
Pense que você deseja enviar dinheiro para um amigo. No sistema tradicional, o banco verifica se você tem fundos, autoriza a transação e a registra em seus sistemas. Já no universo do Bitcoin, quem faz esse papel é a blockchain. Cada transação é organizada em blocos, como páginas de um livro. Esses blocos se conectam em uma sequência linear e cronológica, formando uma cadeia de blocos, ou blockchain. A alta resistência à falsificações é uma característica comum de sistemas descentralizados, algo que ocorre porque o ato de adulteração em uma transação faria com que todos os outros blocos considerassem aquela transação inválida. Todas as operações são registradas de forma clara, sem divulgar dados pessoais, apenas endereços criptografados são exibidos. Esta fusão de segurança, privacidade e inovação faz da rede do Bitcoin uma revolução na forma como percebemos dinheiro e valor.
A perspectiva de Trump parece desconsiderar as restrições técnicas da blockchain e do modelo descentralizado do Bitcoin, um sistema concebido para ser independente de qualquer entidade central, seja ela um governo ou uma empresa. Além disso, é fundamental considerar o princípio da escassez do Bitcoin, uma característica que foi projetada para garantir que sua criação fosse limitada, conferindo-lhe um caráter deflacionário. De um total de 21 milhões de Bitcoins estipulados por Satoshi Nakamoto, já foram extraídos cerca de 19,7 milhões, ou seja, 93,7% do total. Isso significa que restam apenas 1,3 milhão de Bitcoins, que, segundo estimativas, deverão ser extraídos ao longo dos próximos 29 halvings, previstos para ocorrer entre 2024 e 2140. A mineração é um processo gradual, que será realizado até a metade do século 22, quando a mineração de Bitcoins chegará ao seu limite final. Em outras palavras, mesmo que seu plano se concretizasse, os Estados Unidos deteriam diretamente apenas 6,3% de todos os Bitcoins existentes.
A fala de Trump pode despertar em muitos uma dúvida: com o poder computacional suficiente, o governo poderia controlar o Bitcoin? Apesar de todas as contramedidas de segurança, nenhuma barreira é totalmente impenetrável, hipoteticamente é possível sim causar um ataque coordenado a estrutura do Bitcoin como o ataque de 50% + 1. Quando uma única entidade ou grupo de entidades controlam mais de 50% do poder total de mineração da rede é possível manipular a blockchain realizando gastos repetidos ou impedindo que certas transações sejam confirmadas.
No entanto, é importante notar que tal ataque ainda seria extremamente difícil de executar, a rede Bitcoin é projetada para ser resiliente e tem várias camadas de medidas de segurança para evitar tais cenários. Além disso, qualquer tentativa de manipular a blockchain dessa forma provavelmente seria notada por outros participantes da rede, e a comunidade tomaria medidas para evitar o ataque e proteger a integridade da rede. Nenhum país do mundo, por mais próspero que seja, possui capacidade de realizar tal ataque.
Nos Estados Unidos, a atividade de mineração de Bitcoin teve um crescimento exponencial nos últimos anos, transformando-se numa indústria de bilhões de dólares. Isso aconteceu principalmente por causa do significativo aumento no valor do Bitcoin, que estimulou o investimento em infraestrutura e equipamentos especializados. Contudo, mesmo com esse avanço, os mineradores dos Estados Unidos ainda representam menos da metade do poder computacional mundial. Esse dado revela uma impossibilidade estrutural que impede o controle do Bitcoin por um país. Já as mineradoras dos EUA dependem de centros de dados em outros países para completar a rede. Tal interdependência dificulta ainda mais a ideia de um controle central dentro das fronteiras americanas ou de qualquer outra nação. As mineradoras dos EUA, como a CleanSpark e a Riot Platforms, estão apostando em uma maior flexibilidade por parte do governo em relação às regulamentações ambientais. Há entre elas a esperança de que Trump possa reduzir a legislação sobre o impacto ambiental e, ao mesmo tempo, reverter políticas mais restritivas do governo Biden, com nenhum plano de dominação mundial incluso. Essa aliança entre o republicano e o setor de criptomoedas, que já rendeu milhões em contribuições eleitorais, demonstra como o Bitcoin se tornou uma moeda de poder político e econômico.
Ao analisar tecnicamente a declaração de Trump, logo vemos que esta realmente não passa de populismo, que se removido o caráter midiático, torna-se uma frase risível. Tão absurda quando defender no congresso a revogação da lei da gravidade. É tolice acreditar que os Estados Unidos, mesmo sendo a maior economia do planeta, seriam capazes de realizar tamanha operação. Mas a impossibilidade técnica e econômica imposta pela arquitetura de blockchain não é o único impeditivo para que o Bitcoin seja controlado pelos Yankees. A concorrência global tem se intensificado de maneira impressionante. Nações como Rússia, China, Cazaquistão e África do Sul estão se tornando novos centros para a mineração de criptomoedas, beneficiadas pelos custos de energia mais acessíveis e uma regulamentação mais flexível.
Em particular, a Ásia tem observado um crescimento nas vendas de equipamentos para mineração, mesmo com as tentativas da China de proibir a atividade dentro de suas fronteiras em 2021. Com uma postura mais aberta em relação às criptomoedas, a Rússia se transformou em um campo propício para os mineradores, que se beneficiam de sua ampla disponibilidade de energia a preços acessíveis. Na África, a Etiópia, com sua vasta capacidade de geração de energia hidrelétrica, tem se sobressaído como um pólo emergente de mineração. Estes países proporcionam margens de lucro significativamente superiores em relação aos EUA, que lidam com elevados custos de eletricidade, restrições impostas por leis ambientais, além da diferença cambial em relação às moedas emergentes. Esta expansão da mineração de Bitcoin surge como uma reação natural à inflação e à diminuição do poder aquisitivo que muitos residentes desses países pobres enfrentam.
Afinal, essa é a principal vantagem do Bitcoin, e o que verdadeiramente o distingue das moedas convencionais, é a sua autonomia, segurança e valor autêntico. Na Blockchain, existe um ambiente de puro livre mercado, onde a lei da oferta e demanda, fundamentada no princípio da escassez, assegura um valor duradouro para a moeda. Ele proporciona uma alternativa contra políticas fiscais excessivas e à inflação descontrolada das moedas fiduciárias, o que justifica sua adoção cada vez maior em nações em desenvolvimento. Em um mundo progressivamente instável, marcado por turbulências econômicas e políticas, o Bitcoin se apresenta como um refúgio confiável para aqueles que desejam proteger seu patrimônio das armadilhas fiscais governamentais. Embora seja tecnicamente possível um governo possa modificar a blockchain, controlando mais da metade da rede de mineração, caso tal cenário se concretizasse, o controle do Bitcoin seria a menor de nossas preocupações. Pois um governo com tal poder já dominaria o mundo de maneira totalitária, e o controle sobre o Bitcoin seria apenas mais uma ferramenta em um cenário distópico.
O Bitcoin, como foi idealizado por Satoshi Nakamoto, permanece um bastião de resistência contra o controle estatal e as políticas monetárias inflacionárias. As ameaças à sua segurança, como a computação quântica ou uma possível queda da internet, não são capazes de minar sua integridade. A criptomoeda já trocou de criptografia no passado e continuará a se adaptar às mudanças tecnológicas. Mas mesmo sendo uma jogada de mídia, a fala de Trump não deixa de refletir a vontade estatista de controlar as criptomoedas. Trazendo a tona que existe sim uma luta constante entre os governantes e a liberdade financeira dos indivíduos. No fim, o Bitcoin continuará sendo o que sempre foi: um símbolo da liberdade do indivíduo. Um bastião de resistência financeira que nenhum governo e nem ninguém, por maior ou mais audacioso que seja, conseguirá controlar.
https://valor.globo.com/financas/criptomoedas/noticia/2024/12/26/promessa-de-trump-de-minerar-todos-os-bitcoins-em-solo-americano-e-quase-impossivel.ghtml