A ética libertária nos ensina que cada um é livre para decidir o que quiser a respeito do seu corpo. Mas será que isso vale também para o caso das Testemunhas de Jeová?
O Supremo Tribunal Federal iniciou, poucos dias atrás, a análise de duas ações protocoladas por Testemunhas de Jeová, relacionadas à questão da transfusão de sangue. De forma mais específica, dois indivíduos que professam essa fé estão envolvidos em questões judiciais que envolvem não apenas seu direito de recusar esse tipo de tratamento médico. As questões envolvem, também, a obrigação, por parte do estado brasileiro, de bancar tratamentos médicos alternativos.
As Testemunhas de Jeová são conhecidas, dentre outras características inerentes à sua fé, por rejeitar a transfusão sanguínea. O entendimento dos praticantes dessa religião é de que o sangue, para Deus, representa a vida. Receber sangue, por qualquer via que seja, seria violar esse princípio, diante do próprio Deus. Essa crença das Testemunhas de Jeová também é fundamentada em sua leitura de textos bíblicos presentes no Pentateuco e nos Atos dos Apóstolos.
Dito isso, vamos aos dois casos em questão. No primeiro deles, uma mulher, Testemunha de Jeová, iria se submeter a uma cirurgia cardíaca pela rede pública de saúde — o famigerado SUS. Ela, inclusive, chegou a assinar um termo, assumindo os riscos de passar por uma cirurgia tão invasiva sem a possibilidade de receber transfusão de sangue. Porém, como já havia se negado a assinar a autorização prévia para transfusão, a cirurgia foi cancelada. Os médicos não quiseram correr esse risco.
Nesse caso, as instâncias inferiores da Justiça negaram a solicitação da mulher para prosseguir com a cirurgia, entendendo que os riscos envolvidos justificam o cancelamento do procedimento. Agora, o caso chegou à Suprema Corte, com o argumento, por parte da Testemunha de Jeová, de que caberia exclusivamente a ela, como uma pessoa livre e adulta, decidir sobre os riscos de seu tratamento. Eu diria, belo e moral. Já o segundo caso se refere a um homem, também da mesma religião, residente em Manaus. Ele conseguiu nas instâncias inferiores, obrigar a União, em conjunto com os governos municipal e estadual, a custear sua cirurgia de artroplastia total em outro estado. O motivo para essa decisão se baseia no fato de que o Amazonas não oferece tal cirurgia sem a realização de transfusão de sangue — coisa que já está disponível em outras partes do país. Nesse caso, foi a União quem recorreu ao STF para buscar a reversão da decisão.
Vemos, nesse julgamento da Suprema Corte, dois pontos claramente distintos. O primeiro deles se refere ao direito de os indivíduos decidirem sobre seus próprios tratamentos médicos. Nesse caso, a ética libertária se parece até com o discurso dos progressistas: meu corpo, minhas regras. A diferença é que para nós, libertários, isso vale para qualquer coisa — e não apenas conforme a conveniência política. Segundo a ética libertária, cada indivíduo tem soberania sobre seu próprio corpo — a chamada “autopropriedade”, — sendo, portanto, livre para tomar decisões que digam respeito à sua própria vida, inclusive com base em suas próprias convicções religiosas. Porém, mesmo fora do libertarianismo, esse tema já foi alvo de debate, inclusive na esfera estatal. Nem falaremos da recente crise sanitária, porque o YouTube não gosta muito desse assunto. Vamos, então, manter a conversa na doutrina das Testemunhas de Jeová.
Em vários casos jurídicos anteriores, pacientes que professam essa fé tiveram que acionar a justiça estatal para usufruir do direito de recusar a transfusão de sangue. Por incrível que pareça, algumas instituições de saúde, eventualmente, processam seus pacientes por conta disso, afirmando que o direito à vida deve prevalecer ao direito à consciência religiosa. Pois é. De qualquer forma, o entendimento majoritário da justiça estatal brasileira tem sido no sentido de conceder essa liberdade ao paciente. Lembre-se: na justiça estatal, você não tem direitos. Você tem apenas concessões, que podem ser removidas a qualquer momento.
Pois bem: está mais do que claro que, segundo a ética libertária, o paciente não pode ser impedido de recusar determinados tratamentos, com base no critério que quiser utilizar. Contudo, no primeiro caso citado, vemos que ainda há outro fator a ser considerado: a recusa do hospital em questão em fazer tal cirurgia sob essas condições. Do ponto de vista libertário, isso também é plenamente válido. Afinal de contas, os médicos devem ter o direito de aceitar ou não fazer determinado procedimento, com base em seu protocolo. Essa é uma via de mão dupla: sou livre para fazer minhas exigências, e as pessoas são livres para aceitá-las ou não.
Até aí, não tem muito mistério: a discussão não vai muito longe. Só que, em se tratando de intervenções estatais, e do pensamento estatista do brasileiro médio, a coisa precisa ir além. Como vimos especialmente no segundo caso analisado pelo STF, um paciente da mesma religião quer que o estado lhe banque um tratamento de saúde com base em suas próprias convicções religiosas. Portanto, a questão não se refere apenas à autopropriedade. Ela se refere, também, à obrigatoriedade de o SUS custear as escolhas dos indivíduos. Ou, em outras palavras: o STF decidirá se todos os brasileiros devem bancar um tratamento de saúde específico, exigido por algumas Testemunhas de Jeová.
Esse debate deve se iniciar no ponto básico de toda essa questão. Pela ética libertária, algo como um SUS não deveria sequer existir, porque esse modelo representa a socialização dos custos de saúde, sem que os pagadores tenham a opção de negar seu pagamento. Como o SUS é bancado via impostos, ou seja, por meio de grana extraída violentamente da população, então todo esse sistema é, por definição, antiético. Esse julgamento do STF, portanto, viola, por si só, os princípios do libertarianismo.
Mas podemos dar mais um passo nesse debate. Existindo um SUS, ele deveria ser obrigado a bancar tratamentos tão específicos, apenas para se adequar às exigências religiosas de seus usuários? A verdade é que, do ponto de vista utilitário, quanto mais específico for um tratamento de saúde, mais caro ele se torna. O fato de haver múltiplos usuários para determinado serviço faz com que seu custo unitário seja reduzido. Neste caso, a tendência é que o custo social seja elevado, para um benefício social não tão abrangente assim.
Aliás, esse problema é observado também na iniciativa privada, novamente, por conta da interferência estatal. Não são raros os casos em que a justiça brasileira condenou planos de saúde a cobrir tratamentos caros que não foram originalmente contratados, ou cujo custo é superior à cobertura acordada. Esse tipo de situação prejudica a viabilidade econômica das corretoras, o que leva essas empresas a tomar a decisão mais óbvia: aumentar o preço dos planos de saúde para todos os usuários. Mais ou menos como acontece com o SUS, só que de forma mais evidente.
Veja, portanto, que o problema, aqui, não é a religião: é o estado. Essa entidade ilegítima e antiética não deveria poder impedir ninguém de fazer nada, assim como não deveria obrigar ninguém a bancar as vontades alheias. Infelizmente, muita gente ainda não consegue compreender isso plenamente. Por um lado, temos hospitais que querem obrigar indivíduos a aceitar determinados tratamentos, mesmo contra suas próprias convicções. Por outro, temos indivíduos que querem que toda a sociedade banque suas particularidades religiosas.
Você deve ser livre para seguir as convicções que quiser. Pode se recusar a receber transfusão sanguínea, ou pode não trabalhar aos sábados, ou então, não comer carne de vaca, ou ainda não usar métodos contraceptivos. Essas escolhas são particulares e inerentes aos seus direitos fundamentais sobre sua própria vida. Contudo, você não pode obrigar os outros a concordar com suas crenças e práticas e, muito menos, a pagar por isso.
No fim das contas, essa é mesmo a grande beleza do libertarianismo. Você é livre para ter suas próprias convicções, mas deverá arcar com suas consequências, sem terceirizar essa responsabilidade para quem quer que seja. No caso das Testemunhas de Jeová, a coisa é bastante simples de se compreender. Numa sociedade plenamente livre, haveria hospitais oferecendo tratamentos de saúde adequados à crença dessas pessoas. Elas, por sua vez, poderiam bancar esses tratamentos por conta própria, ou com auxílio de pessoas que, voluntariamente, queiram fazer tal generosidade. Belo, moral e, acima de tudo, ético.
Chegar a ser triste pensar que é preciso que uma Suprema Corte determine que indivíduos possuem direito a decidir sobre sua própria saúde; assim como é triste, também, que tal Corte decida se toda a sociedade deve bancar essa decisão pessoal. Também nesse aspecto, a resposta libertária é a mais adequada. Ninguém pode tirar seu direito de escolher o que quiser para sua saúde, com base em suas convicções, da mesma forma que você também não poderá tirar o direito de as pessoas não concordarem com isso. Não se trata, apenas, de um tema religioso: estamos falando do fundamento da vida em sociedade.
https://revistaoeste.com/politica/supremo-analisa-se-testemunha-de-jeova-pode-recusar-transfusao-sanguinea/
https://www.jw.org/pt/testemunhas-de-jeova/perguntas-frequentes/por-que-testemunhas-jeova-nao-transfusao-sangue/
https://www.conjur.com.br/2023-jun-10/testemunha-jeova-direito-nao-submeter-transfusao/