Alexandre de Moraes, o alienista

“Nada tenho que ver com a ciência; mas, se tantos homens em quem supomos juízo são reclusos por dementes, quem nos afirma que o alienado não é o alienista?”

O ministro Alexandre de Moraes é uma caricatura moderna de Simão Bacamarte, protagonista da obra O alienista — termo antigo para psiquiatra — de Machado de Assis. Respaldados por suas certificações, cercados por puxa sacos e incapazes de entender que eles, e não os demais, são os alienados.

A clássica obra da literatura brasileira acompanha o alienista Simão Bacamarte, renomado cientista, tanto na Europa quanto no Brasil, em seu retorno à cidade carioca de Itaguaí, e o início de seu trabalho na Casa Verde — instituição para o estudo e contenção dos malucos da cidade. Acontece que Bacamarte expande cada vez mais sua definição de alienado, até que três quartos da cidade vão parar no manicômio.

Os paralelos com Alexandre de Moraes são cômicos, de tão claros, mas é preciso passar um por um para que a caricatura fique completa, e no final, imaginar se o destino de Alexandre será o mesmo do alienista.

O Dr. Simão Bacamarte era um aclamado cientista, protegido da corte portuguesa e muito respeitado como homem das letras e da ciência. Em algum momento de sua vida, decidiu abandonar Portugal e voltar à terra de Itaguaí, a fim de se aprofundar nos seus estudos — entres eles o da psicologia. Durante todo o livro, os habitantes da cidade demonstram uma reverência quase religiosa aos conhecimentos de Bacamarte e sua formação.

Alexandre de Moraes é igualmente bem qualificado nos critérios necessários dentro de seu ofício. Graduado pela USP em 1990 e doutor por essa mesma instituição nos anos 2000, quando defendeu a tese: “Jurisdição constitucional e tribunais constitucionais - garantia suprema da Constituição”. Tem mais de um livro publicado por editoras de renome sobre o ofício do direito. É professor titular da Universidade Presbiteriana Mackenzie e foi livre-docente na Universidade de São Paulo, até que, nesse ano de 2024, passou no concurso para professor titular. Na política, já atuou como Promotor de Justiça, ministro da justiça e mais uma dezena de cargos importantes, tanto a nível estadual como federal.

Assim como Bacamarte, não há questionamento sobre a competência técnica de Moraes, apenas sobre suas ações e motivações. Ser um grande jurista, ou um grande médico, não te exime de críticas, sejam elas na área de sua expertise, sejam elas de cunho moral ou cívico.

A segunda grande semelhança entre esses personagens é a quantidade de puxa saco que os cercam. Bacamarte era respeitado por todos da cidade, um respeito desproporcional, dado os acontecimentos da novela. Mas eram Crispim Soares, boticário da vila, e Dona Evarista, sua mulher, os grandes adoradores do alienista. Crispim gostava do assédio que recebia por ser amigo pessoal do cientista, e Dona Evarista gostava de ser parceira de uma celebridade, dos paparicos e das festas que participava.

Alexandre foi muito elogiado pela mídia durante o governo Bolsonaro, devido a sua atuação política contra o ex-presidente. Porém, a lua de mel acabou. Grande parte da mídia brasileira já reconhece os abusos de poder do ministro e como ele tem atuado para além de seu cargo.

De acordo com The Intercept Brasil, a respeito das mensagens vazadas de Moraes, percebemos como seus subordinados buscam satisfazer as demandas do ministro, mesmo quando não identificam nada ilegal. Em uma das conversas entre Airton Vieira, assessor de Moraes, e Eduardo Tagliaferro, então chefe da AEED, Vieira afirma que Alexandre “cismou” com o caso, e pediu alterações no relatório para “satisfazer sua excelência”. E esses ainda são homens em altos cargos, aqueles abaixo na cadeia alimentar devem ser ainda mais capachos.

Por fim, mas não menos importante, tanto Bacamarte quanto Alexandre de Moraes são homens arrogantes. O alienista começa a expandir cada vez mais sua definição de loucura. Primeiro prende Costa, homem que perdeu toda sua fortuna ao emprestar dinheiro e não conseguir cobrar seus devedores. Prendendo em seguida sua prima, quando esta tenta defender seu parente, argumentando que sua família é incapaz de lidar com dinheiro por causa de uma maldição.

Primeiro os excêntricos, depois os supersticiosos, até que todos aqueles que tinham pequenas manias ou desvios de caráter foram parar na Casa Verde. Quando três quartos da população estava encarcerada, Bacamarte se tocou que existia uma falha em sua teoria, pois pelas leis da estatística era impossível que existissem tantos loucos assim.

Alexandre de Moraes é o autointitulado maior defensor da democracia no Brasil. Mesmo que para isso ele precise passar por cima de alguns ritos e tradições desse regime, mesmo que precise agir como legislador e executor algumas vezes, e mesmo que possa ser vítima, juiz e júri ao mesmo tempo. Como ele acredita ser a última defesa contra a barbárie, não vê nenhum problema em ignorar algumas garantias fundamentais do direito.

Infelizmente, ao contrário de Bacamarte, o ministro do supremo ainda não percebeu que ele é o alienado. Somente um homem insano acredita que idosas saudosistas da ditadura de 64 devem ter penas maiores do que assassinos e sequestradores.

Moraes parece acreditar que, limitando o suficiente o discurso na internet, o povo brasileiro vai voltar a uma suposta civilidade; que se expostas apenas a mídia tradicional, as pessoas passivamente aceitarão qualquer opinião. Inclusive já expressou sua saudade do tempo quando não havia redes sociais.

A internet não é composta por marketeiros do mal, cujo único objetivo é destruir os pilares da democracia. É simplesmente natural que, expostas a diferentes ideias, as pessoas comecem a se distanciar em crenças. Supor que somos todos ignorantes e que precisamos de um guia, é um desrespeito com a inteligência alheia e uma fé sem limites na própria.

Nos capítulos finais da obra de Machado de Assis, a população de Itaguaí inicia a Revolta dos Canjicas, a fim de derrubar a Casa Verde e parar as prisões do alienista. Mas ninguém tem coragem de enfrentar Bacamarte, já que possui um caráter irrepreensível e aparenta honestidade em suas ações.

Por fim, Bacamarte liberta todos os presos de seu sanatório e conclui que desvios de caráter são parte natural da personalidade humana. Ele, porém, é o único anormal, já que não possui qualquer defeito, e prende-se sozinho na Casa Verde. Vem a morrer 17 meses depois, sem ter progredido na cura de sua própria loucura.

Infelizmente, é improvável que nosso ministro Alexandre de Moraes tenha o mesmo destino do alienista. Ao contrário de Bacamarte, o caráter de Alexandre não é visto como incorruptível, muito pelo contrário, sua atuação política enquanto juiz da suprema corte é clara para todo cidadão brasileiro, inclusive para aqueles que o defendem.

Reconhecer os próprios erros, voltar atrás e agir dentro do cargo que lhe cabe é esperar muita nobreza de um sujeito como Moraes. A única dúvida que resta é, se ele realmente acredita estar fazendo o bem para o país, ou se reconhece estar agindo em benefícios de seus aliados políticos. Sinceramente, não sei o que seria pior.

Pena que chegamos a um ponto onde temos menos gênios como Machado de Assis, cujas obras ressoam até os dias de hoje, e mais brutos arrogantes como Alexandre de Moraes. Pior ainda é que os fãs do primeiro se manifestam em menor número do que os defensores do segundo.

“Nada quero ter a ver com a política; mas, se tantos homens em quem supomos honestos são reclusos por bandidos, quem nos afirma que o tirano não é o juiz?”

Referências:

https://www.conjur.com.br/2018-mar-04/embargos-culturais-dr-simao-bacamarte-tese-todos-sao-loucos/
https://pt.wikipedia.org/wiki/Alexandre_de_Moraes
https://www.intercept.com.br/2024/08/15/vazamento-alexandre-de-moraes-vaza-jato/