Reescreveram 1984 como uma OBRA FEMINISTA

Um livro cuja critica é sobre a reescrita de histórias, recebeu uma versão reescrita no ano passado. Como diria o Quico do Chaves: que coisa, não?

Se você clicou nesse vídeo, obviamente já conhece o livro "1984", de George Orwell, e toda a sua narrativa em um mundo distópico controlado por três superpotências em uma guerra eterna. Mas hoje não falaremos do livro original em si, mas sim de sua nova releitura, "Julia", que foi lançado no ano passado e foi escrito pela autora Sandra Newman, com permissão autoral da família de Orwell. É claro que propriedade intelectual é uma bobagem, mas isso serve para "autenticar" esse livro como uma parte canônica da história original, e não como apenas uma fanfic de uma autora qualquer.

Sandra Newman é uma escritora norte-americana, conhecida por seus romances e obras de não-ficção. Seus livros anteriores costumavam ter um estilo mais experimental e exploravam temas de identidade de gênero, perda de memória e realidade. Suas obras mais famosas, antes de Julia, foram “The Heavens” e “The Men”, possuindo uma pequena bolha de fãs.

Seus livros costumam abordar questões feministas e sempre focam mais na personagem feminina como protagonista da história, como dá para ver em sua reescrita de 1984, onde colocou foco na personagem secundária da obra. Em sua tradução para o português brasileiro, o livro foi descaradamente nomeado de "Julia: Uma Releitura feminista de 1984". Em seu livro "The Men", Newman escreve sobre um mundo onde todos os homens desapareceram, um sonho daquelas feministas de Tiktok que dizem preferir conviver numa floresta com um urso, do que com um homem.

Mas falando sobre a releitura em si, a ideia de trazer de volta a história original por uma nova perspectiva poderia ser um bom conceito, ainda mais trazendo personagens secundários que já conhecemos anteriormente. Porém, as maiores reclamações dos leitores são sobre o fato de que o começo do livro é extremamente lento e monótono, já que, diferente do original, onde isso servia como uma introdução para aquele mundo, aqui nós já conhecemos o contexto geral e só somos relembrados disso.

Uma coisa surpreendentemente boa no livro é que nos é mostrado mais do lado feminino da sociedade do partido, no qual as mulheres são tratadas de maneira similar ao da Alemanha Nazista e da juventude hitlerista: não são tratadas como indivíduos, mas sim como procriadoras, com a única função de criar novos membros da sociedade, que serão totalmente fiéis ao partido, enquanto várias mulheres usam de seu corpo para chantagear ou ter privilégios vindo de membros do alto escalão.

Embora também, a própria personagem da Julia na versão original de Orwell era descrita como alguém mais impulsiva e superficial, não se importando nem com alguns fatos que Winston lhe contava, no novo livro ela se torna bem mais estrategista e consciente do mundo ao seu redor, com uma visão menos idealista da sociedade controlada pelo partido do socialismo inglês. Até a relação de Julia com Winston mudou, pois enquanto no original o relacionamento íntimo dos dois era mais uma rebelião individual contra o sistema, nessa obra, Winston é mostrado como tendo uma visão mais machista, enquanto Julia é apresentada como alguém que "tem um controle maior sobre suas emoções e suas interações do que Winston", segundo o que o próprio livro faz questão de sugerir.

Não é que eu esteja querendo sugerir algo, mas acho que homens que estão em um relacionamento podem concordar comigo, de que na maioria dos casos as mulheres não têm um controle melhor de suas emoções do que o seu parceiro. A reescrita do personagem da Julia, mais parece um Self insert da personalidade da autora na personagem, do que qualquer outra coisa. O livro em si não é ruim, mas obviamente não tem a mesma qualidade da obra original, e até desmistifica algumas coisas sobre aquele universo e sobre alguns personagens, tirando a aura de mistério ao redor deles e diminuindo o medo do leitor em relação a essas figuras que, até então, tínhamos pouca informação sobre.

Muitas lacunas que Orwell fez foram propositais para causar uma desumanização de todo o cenário, com amigos próximos de Winston tendo apenas o primeiro nome, como "Tom" ou "Julia", enquanto que o velho que o enganou e fez uma sessão de tortura, só era chamado pelo seu sobrenome de "O’Brien", e sequer sabíamos seu primeiro nome. No livro original, também há várias perguntas que ficam sem resposta, sobre o próprio mundo, como por exemplo, se a Eurásia e a Lestásia realmente existem, ou são apenas justificativas do partido para continuar a guerra, ou se a Oceania realmente é uma nação intercontinental e não apenas uma ditadura norte coreana que controla apenas as ilhas britânicas. Nada disso é respondido no livro e fica para o leitor interpretar como quiser.

Embora os dois livros retratem o estado da Oceania como uma entidade quase onipresente, com olhos em todos os lugares e que nunca irá colapsar, ele obviamente tem suas falhas internas. Para começar, um estado intercontinental de tais proporções precisa de suprimentos para se manter firme, mesmo que boa parte seja gasto nas guerras eternas. Não nos fica claro sobre como é o tratamento do estado com as regiões da américa latina, que foram anexadas agressivamente no início da terceira guerra, e que, por terem uma cultura totalmente distinta, seriam facilmente vistos como colonizadores ingleses na região, deixando ela propícia para revoltas.

Essa falta de comunicação entre o povo e o estado é um problema enorme. O próprio partido quer criar uma nova língua, enquanto o inglês comum continuará sendo usado pelos proletas e pela população civil, ou seja, isso criará uma barreira linguística no longo prazo, entre dois povos que ocupam o mesmo espaço, mas que vivem realidades diferentes, resultando no estado se isolando cada vez mais da sociedade e perdendo seu controle sem nem perceber.

Além desses fatores externos e de estrutura, também temos conflitos internos dentro do partido. Nós vemos durante a história que pessoas carismáticas ou que ficam mais populares politicamente são mortas para evitar que se tornem uma ameaça no futuro, fazendo com que os únicos caminhos para sobreviver como um funcionário de alta patente, seja ser um completo escravo das elites que comandam sob a imagem do grande irmão, ou as matar e tomar o poder antes que elas o eliminem como uma potencial ameaça.

Para fins de curiosidade, no apêndice "Manual da Novilingua", do livro 1984, nos é explicado em um formato de documentação histórica como funciona o idioma desse universo, sendo o manual escrito como um livro dentro daquele próprio universo, com o tempo verbal no pretérito, indicando que aquele livro foi escrito em algum momento futuro daquele universo, com a "Novilingua" tendo virado apenas uma curiosidade histórica. E é muito provável que a queda da Oceania não demorou para acontecer, já que o protagonista do livro também é citado, e não houve tempo suficiente para seu nome ser apagado de todos os registros. Quem sabe uma dessas guerras eternas da Oceania não era secretamente a de combater uma rebelião em massa nas Américas? Fica ai pra gente teorizar...

Essa versão feminista de 1984 sendo transformada em um spin-off canônico da história original, só reforça ainda mais a visão libertária de que propriedade intelectual é uma besteira completa. Além de não haver vítimas nesse suposto crime de replicar a criação de outra pessoa, muitas das vezes a comunidade e os fãs de alguma obra fazem trabalhos muito melhores do que a suposta "dona" dos direitos autorais, seguindo o legado da obra original. Isso pode ser visto em algumas franquias de histórias e jogos que não se importam tanto com os fãs criarem histórias com seus personagens, o que expande o universo original e gera mais conteúdo sem prejudicar ninguém.

A intenção original de Eric Arthur Blair, o nome verdadeiro de George Orwell, era de escrever o livro para criticar somente a parte autoritária que os países socialistas da época estavam assumido logo no início de suas revoluções, como por exemplo na União Soviética. Ele próprio defendia tão fortemente um socialismo "libertário" (como se isso fosse possível), que chegou até a lutar na Guerra Civil Espanhola ao lado dos republicanos e anarquistas, e posteriormente publicou um livro sobre sua experiência como combatente voluntário contra os nacionalistas espanhois.

É irônico pensar que um socialista escreveu um dos maiores livros anticomunistas da história, tudo porque ele continuou insistindo que isso era apenas uma "distorção no movimento" que podia ser consertada, sendo que hoje nós vemos que o autoritarismo é apenas uma característica natural do socialismo para impor um sistema que ninguém quer, mas que os líderes partidários se acham iluminados o bastante para saber o que é melhor para todo mundo.

Referências:

https://www.youtube.com/watch?v=zQW-_BMG80w